A aprovação da lei 17.975 sobre a revisão do Plano Diretor em 08 de Junho de 2023, sancionada pelo prefeito, deixou muitas questões em aberto, em especial quanto à permissão de verticalização com edificações sem limites de altura, nas chamadas áreas de influência dos Eixos de Estruturação Transformação Urbana (EETU), situados no entorno dos eixos de mobilidade e transportes existentes e planejados até 2029.
Apesar das movimentações e protestos dos movimentos de moradia, urbanistas e especialistas, as áreas de influência dos EETU foram ampliadas de 600 para 700 metros no raio de estações de metrô, e de 150 para 400 metros ao longo dos eixos dos corredores de ônibus, que ainda assim, poderão elevar em cerca de 150%. o território da cidade a ser adensado e verticalizado.
Nesses EETU poderão ser aumentadas o número de garagens permitidas nos imóveis e o tamanho das unidades, anteriormente limitado a 80 m2, mediante pagamento de outorga onerosa, para construir edificações com áreas construídas de até 4 vezes relativo a área dos terrenos, mas chegando a 8 ou 9 vezes mediante outros condicionantes. Essas e muitas outras questões, desmontam completamente o modelo urbanístico original proposto no PDE 2014, de redução do uso do carro e de oferecer moradias para as classes de menor renda junto a esses eixos de mobilidade.
O conceito de maior adensamento construtivo e populacional no entorno dos eixos de mobilidade e transportes é adotado mundialmente pelas médias e grandes cidades, e vem sendo gradualmente adotado no Brasil desde 1965, como no Plano Diretor de Curitiba de autoria do urbanista Jorge Wilheim, que o adotou também em São Paulo, no Plano Diretor Estratégico de 2002. Posteriormente, o conceito teve sua aplicação radicalizada no Plano Diretor Estratégico de São Paulo em 2014, o qual foi objeto dessa revisão atual agora em 2023.
Outro conceito urbanístico associado à este, é que a cidade deve ser mais voltada para as pessoas mediante incentivo ao transporte de massas, e o desincentivo ao uso do carro e do transporte individual, para deixar a cidade mais sustentável e menos poluída, e com mais espaços destinados ao transporte ativo com as ciclovias e áreas para pedestres.
O conflito entre verticalização e qualidade ambiental urbana vem ocorrendo desde 2014, pela maneira que a delimitação dos EETU. A ampliação crescente das áreas verticalizáveis foi realizada sem estudos prévios, e vem causando um desequilíbrio absurdo na economia da cidade, bem como, a ampliação dos riscos e impactos sociais, ambientais e climáticos na cidade.
Nenhum estudo de impacto urbano ou ambiental, econômico ou de capacidade suporte dos sistemas de transporte foram realizados para justificar e calibrar a proposta de ampliação das áreas destinadas à verticalização e adensamento. Grandes impactos ambientais e urbanísticos estão em curso com a transformação dos bairros e subprefeituras, como Pinheiros, Vila Mariana, Perdizes, Butantã, Belém, Tatuapé, Santana e outros.
Entre as questões que vem sendo reiteradamente colocadas pelos vários setores representativos, ressalta-se: o impacto urbano ambiental causado pelos Eixos de Estruturação Urbana na estrutura original dos bairros e no meio ambiente, gerando impactos negativos nos aspectos sociais, expulsando populações e afastando comércios tradicionais (gentrificação), impactos ambientais nas drenagens e non impermeabilização do solo, e em consequência, com o aumento da vulnerabilidades aos riscos climáticos nos vários bairros/Subprefeituras da cidade, que foram explicitados pelas Associações de Bairros de Perdizes, Belas Vista, Pinheiros, Vila Mariana, Jardins e Consolação, entre outros, e pelos movimentos sociais e ambientais da cidade.
Infelizmente a ausência de estudos ambientais e de capacidade suporte requeridos pelo Estatuto da Cidade e Constituição Federal de 1988, ocorreu desde a criação dos EETU no PDE 2014, e se repetiu no Projeto de Revisão apresentado pelo executivo, e agora foi escancarado no substitutivo apresentado pelo relator, ou seja, houve o predomínio do atendimento aos interesses imobiliários para novas ofertas imobiliárias sobre os demais objetivos do PDE, de moradia, transporte e meio ambiente, e sem avaliar os riscos climáticos e impactos ambientais decorrentes dessa grande permissão à verticalização na cidade.
Observamos que as áreas do chamado Arco do Tietê, situado na várzea do rio Tietê que também serão tratados como eixos pelo projeto até 2024, bem como, o Arco no entorno do Rio de Pinheiros, também são destinadas à verticalização e adensamento com até 4 vezes a área dos terrenos, e sem limites de gabarito. Isso pode ser visualizado na simulação que está na montagem da foto acima
A revisão do Plano Diretor aprovada pela câmara e sancionada pelo prefeito não avançou para enfrentar os gravíssimos problemas sociais, ambientais e climáticos que a cidade enfrenta e enfrentará e é ilegítimo por não representar minimamente a vontade da população da cidade, uma vez que os processos de consulta não atenderam o exigido pelo estatuto da cidade e pelas regras constitucionais, sobre a democracia participativa.
E tudo isso ocorre sem ampliar a oferta do transporte coletivo em São Paulo, que demanda maiores investimentos em linhas de metrô e corredores de ônibus, que sempre receberam pouco incentivo desde os anos 1970 até os dias atuais, e estão muito atrás das quantidades disponibilizadas nas grandes cidades mundiais. As metas de implantação de novos corredores de ônibus não foram cumpridas e não receberam os recursos do Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) presente no PDE e há ainda pouco incentivo ao transporte coletivo, especialmente nesta revisão do Plano, e isto se deve ainda ao privilégio dado ao uso do carro e dos veículos movidos a combustíveis fósseis. Por exemplo, o prefeito inseriu a possibilidade de utilizar os recursos do FUNDURB para o recapeamento de vias que são focados em uso de carros e transportes com caminhões e ônibus à diesel.
Ao lado dos eixos de infraestrutura verde e azul e da necessidade de descentralização da gestão no interior das cidades, os sistemas de transportes urbanos são fundamentais para redução de viagens e aumento de economias e empregos nos bairros. São Paulo tem 32 Subprefeituras, algumas delas com mais de 600.000 habitantes, porém sem atividades econômicas e sem transportes e com insuficiência de eixos de mobilidade. A Zona Sul de São Paulo, uma das mais populosas da cidade tem um funil para sua conexão para acessar as demais regiões da cidade devido à insuficiência de infraestrutura viária e de sistema de transportes. Bastou uma parada de energia no sistema de trens existentes para a única linha que interliga a zona sul com o centro da cidade no final de junho de 2023, para que cerca de 3 milhões de pessoas não chegassem a seus empregos, majoritariamente situados no centro expandido. O mesmo ocorre com a única linha de metrô (linha 5) que vai somente até barros intermediários da zona sul.
Esses excessos, poderão gerar deseconomias e externalidades negativas, pela falta de estudos ambientais voltados a ampliar a resiliência para diminuir a vulnerabilidade, garantir maior permeabilidade e drenagens dimensionadas adequadamente, entre outras questões. Outro aspecto importante é a compatibilidade da verticalização com a capacidade, suporte dos sistemas de transportes. Todos estes aspectos colocam em risco a sustentabilidade ambiental e climática da cidade, e não trazem os benefícios sociais que são objetivos originais do Plano Diretor Estratégico.
Esses objetivos centrais de ampliar a produção de unidades de habitação popular junto aos eixos de mobilidade, foram subvertidos no estímulo a imóveis de alto padrão que atendem os objetivos do mercado imobiliário e financeiro internacional. Conforme diagnosticado pelas próprias áreas técnicas da prefeitura essa distorção ocorreu entre 2014 e 2023 nestes lugares privilegiados do ponto de vista da presença de sistemas de mobilidade urbano e de autorização para verticalização. Não há sinais que essa distorção tenha sido eliminadas pela revisão do Plano Diretor Estratégico que infelizmente reforçou especialmente os aspectos considerados negativos e a serem corrigidos.
* Ivan Maglio, engenheiro civil, é doutor em Saúde Ambiental, pesquisador do Cidades Globais do IEA e do Laboratório de Áreas Verdes da FAU/USP, além de membro do Conselho Deliberativo da EngD
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