Seis meses de gestão do governo de Tarcísio de Freitas na Sabesp demonstram que a realidade imposta à empresa é bastante sombria.
Pouco durou a narrativa dúbia da nova diretoria em que, por um lado, dirigia-se à corporação com o discurso nada inovador da busca por “mais eficiência, garantia de sobrevivência da empresa e valorização das pessoas”, enquanto, por outro lado, manobrava servilmente ao mantra privatista.
É água translúcida: todo e qualquer movimento da direção da Sabesp é para saciar o apetite do mercado, para oferecer a empresa líder do saneamento latino-americano às marretadas em um grande banquete sacrificial. Prévia do festim glorioso marcado para antes das eleições municipais foi saboreado, entre risos incontidos, ao se contratar o faz-tudo International Finance Corporation (IFC) para escrever aquilo que não tem vergonha, nem nunca terá.
Duas iniciativas da atual gestão, intrinsecamente conectadas, exigem análise quer seja pelos impactos imediatos para a força de trabalho quer seja para o futuro da empresa: o Plano de Demissão Incentivada (PDI) e a reestruturação organizacional.
Pergunta-se: como será garantida a continuidade das atividades operacionais da Sabesp, conforme anunciado pela direção? Como serão operadas dezenas de estações de tratamento de água e esgoto sem gente qualificada e treinada? Como serão operadas unidades vitais como Centro de Controle Operacional e Sistema Cantareira sem pessoas treinadas para a complexidade de suas tarefas? Como será garantida a qualidade de análises de laboratórios sofisticados? Como serão realizadas manutenções de grande porte em condições emergenciais? Como serão fiscalizados os serviços de reparos de vazamentos?
As respostas já deveriam estar prontas para implantação imediata, ou melhor, bem antes do PDI. Pessoas deveriam ter sido contratadas para o quadro permanente da SABESP substituindo quem está de saída. Ah! Não venham dizer que era preciso aguardar as adesões ao PDI para tomar providências, pois existem levantamentos que identificam as pessoas que estão aposentadas ou em vias de aposentadoria. Quantificar essas ocorrências em unidades e serviços vitais é decisão de primeira hora. Adotar medidas para promover substituição de pessoas experientes com planejamento de capacitação e habilitação de gente nova é decisão de segunda hora. Será que a mentalidade de instituição financeira não permite perceber que cuidamos da saúde de milhões de pessoas? Ou o encurtamento visual alcança apenas o caixa da empresa?
Será gestão temerária se aprofundarem a terceirização a torto e a direito, agravada pela inexistência de uma política interna de terceirização que – pasmem! – avança para a quarteirização. Qual o compromisso e o comprometimento com a missão e os valores da Sabesp que se pode obter de uma pessoa terceirizada, via de regra, com salário aviltado? E se essa pessoa for responsável pela distribuição de água para 20 milhões de pessoas ou pela destinação dos efluentes tratados em um rio? Se contratarem terceirizados para ocupar o lugar de gente tarimbada será uma gigantesca irresponsabilidade com a população e com o meio ambiente. Entretanto – que beleza! – a diretoria poderá mostrar ao IFC a melhoria do índice de ligações por funcionário, um indicador estúpido, pois desconsidera a quantidade de terceirizados na empresa.
Por ora, deixemos de lado a inusitada atração por cargos comissionados para assessoria de diretoria, que movimenta o linkedin de economistas recém graduados, egressos do mercado financeiro e de outros estados.
Quanto à reestruturação, espera-se que uma nova gestão promova mexidas aqui e acolá nas caixinhas organizacionais. No entanto, em 2023, a direção autocrática adotou um enviesado e ultrapassado estudo de consultoria, enfiando-o goela abaixo da corporação. Seu desenho é quase idêntico ao utilizado na Sabesp nos anos 1980, com excessiva centralização funcional decisória, bem como desequilíbrio entre áreas meio e de operação, e que foi um dos vetores que conduziram a empresa para uma crise sem precedentes em meados dos anos 1990. Desprezaram-se valiosas propostas de gente capacitada para identificar e implantar uma reestruturação da organização, como ocorreu em 1995 com engajamento ativo de toda a corporação e que se tornou um admirável caso de sucesso empresarial.
Via de regra, livros e artigos referenciais sobre reestruturação empresarial recomendam realizar: planejamento cuidadoso; comunicação transparente; envolvimento dos funcionários; treinamento e desenvolvimento; realocação e requalificação; gestão de mudanças; e, muito importante, compreender a cultura organizacional.
Ao que parece, o que está posto em prática na Sabesp é uma tentativa de gabaritar em uma prova de “como não se deve fazer uma reestruturação”.
O planejamento deixa muito a desejar. Sequer providenciaram a alocação prévia das transferências de recursos, orçamentos, pessoas e atribuições das antigas unidades para as novas, ou seja, algo que se resolve por meio de uma simples e básica planilha de “DE-PARA”. Sequer prepararam o sistema integrado de gestão corporativa para assimilar essa mudança radical de estrutura e de transferência das designações de responsabilidades para assinaturas de contratos, liberações de pagamentos, controles internos, etc. Ninguém sabe a dimensão das possíveis consequências negativas dessa amalucada movimentação, note-se bem, perfeitamente evitáveis.
Criaram uma atmosfera de incertezas, seguida de uma série de lives sem orientações claras, sucedida por desenhos caricatos de caixinhas e – a cereja do bolo – a criação de unidades cujas atribuições não estão definidas! Especula-se que será contratada consultoria externa para elaborar atribuições de unidades que já foram criadas!!?
As 12.600 pessoas que fazem a Sabesp funcionar, responsáveis por conduzi-la ao elevado reconhecimento do povo paulista, já sofrem consequências. É patente a deterioração do equilíbrio emocional de milhares de trabalhadores e trabalhadoras, de todos os níveis hierárquicos. Em qualquer das 375 cidades em que trabalham, perguntem a eles se estão motivados, se estão confiantes nos rumos da empresa. Perguntem como se sentem. Grande parte está desnorteada, com vínculos e laços destruídos, com medo do futuro. Poderá haver até uma onda de apatia e adoecimento coletivo, pois cresceu a procura por apoio psicológico e medicações para ansiedade, depressão, insônia, etc. A organização está doente e pode matar o afeto que essas pessoas têm pela empresa que completará 50 anos daqui três meses.
A diretoria parece fazer ouvidos moucos ante esse quadro. A máquina de moer carne deve prosseguir em seu trabalho com afinco. Sem empatia e repletas de gerundismos, as lives da diretoria tem público cada vez menor. Será por desencanto, descrédito ou vontade de distanciar-se das más notícias? Aviso à diretoria: pessoas apáticas ou bovinas não aumentam eficiência de organizações. Uns aguardarão pelo momento de pular fora, outros seguirão para o matadouro e outra parte para lugar nenhum. A cultura organizacional está severamente ferida.
Não me recordo se a direção, em algum pronunciamento público, destacou a missão da Sabesp: “prestar serviços de saneamento, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida e do meio ambiente”. Não me recordo se mostrou preocupação com a falta d’água nas periferias ou a extensão do atendimento à população mais pobre. A direção está voltada só para o mercado e o obsessivo e insensato mantra privatista.
A prática obedece à risca a receita preparatória do prato principal a ser servido no banquete privatista: desfazer-se das pessoas mais experientes, quebrar a cultura organizacional, centralizar decisões e deteriorar os serviços. Assim, o valor de mercado subirá, a mídia martelará incansavelmente que “o serviço está ruim e o privado será melhor” e a população, razão de ser da empresa, assistirá passivamente ao banquete.
Espera-se que a comunidade sabespiana e as pessoas que têm acesso a saúde e dignidade por meio de seus serviços de água e esgoto, mostrem garra e unidade para manter a empresa pública, viva e pulsando forte, até que se desfaça esse ciclone de alto potencial destrutivo que ameaça a Sabesp!
* Amauri Pollachi, ex-presidente da APU (Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp), é conselheiro do Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento) e membro do Conselho Deliberativo da EngD (Engenharia pela Democracia).
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