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Editorial da EngD | Derrotar o marco temporal para impedir o genocídio




O Brasil já teve sete Cartas Magnas. Mas somente a última delas, a “Constituição Cidadã” de 1988, tratou com dignidade as populações indígenas. Até aquele momento, marcos como a Lei Nº 6.001/1973, conhecida como “Estatuto do Índio”, legitimava tentativas do Estado de “integrar” os povos originários à sociedade. Não havia respeito à cultura e à história indígenas.


Há 35 anos, o modo de olhar para esses povos mudou. Além de estabelecer garantias e proteção aos indígenas, a Constituição criou critérios para a demarcação de suas terras. O Estado afirmava que demarcar esses territórios era uma das formas de reconhecer e preservar a cultura dos mais diversos povos indígenas.


Nasciam assim, no Brasil, os chamados “direitos originários”. Esses avanços, de tão históricos e relevantes, influenciaram um dos mais importantes documentos sobre povos indígenas e tribais – a Convenção Nº 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), aprovada em 1989. Da mesma maneira, o exemplo brasileiro impactou a Declaração das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos Indígenas, já nos anos 2000.


A tese do marco temporal – que está em pauta tanto no Supremo Tribunal Federal (STF) quanto no Congresso Nacional – é uma inaceitável afronta a essas conquistas civilizacionais. Suas origens remontam a 2009, ano em que o STF julgou a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Em nome dos grileiros de Roraima, o senador Augusto Botelho pedia a remarcação do território.


A Corte acertou na decisão de reiterar a demarcação contínua da Terra Indígena e exigir a retirada imediata dos invasores. Um dossiê lançado em 2019 pelo Conselho Indígena de Roraima enfatizou a importância dessa medida: “Foi somente após a confirmação do STF que se criou um ambiente mais favorável para a elaboração dos planos comunitários de manejo ambiental e territorial, conforme os costumes, crenças e tradições de cada povo, mas buscando parcerias com órgãos públicos, instituições e entidades da sociedade civil”.


Inconformados com a decisão, os proponentes do marco temporal foram na contramão da história se se apegaram a um detalhe: o Supremo, ao dar ganho de causa aos indígenas, afirmou que eles já estavam na Raposa Serra do Sol quando a Constituição foi promulgada. Por isso, ocupações de não indígenas na região estavam proibidas. Daí a retórica dos agressores, que querem estabelecer o ano de 1988 como referência – o “marco temporal” – para definir quais territórios indígenas podem ou não podem ser invadidos.


Querem mais: se os defensores do marco temporal forem vitoriosos nessa batalha, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) deixa de atuar em processos de demarcação, as atuais terras indígenas não poderão ser ampliadas e todos os pedidos de demarcação pendentes serão submetidos às novas regras propostas. Segundo o Conselho do Povo Terena, 156 terras, oito etnias e mais de 80 mil indígenas estariam em risco, num tipo de “genocídio institucionalizado”


Uma projeção da Folha de S.Paulo, com base em estatísticas da Funai, aponta dados mais alarmantes: “275 terras indígenas têm alguma pendência probatória junto à entidade. De 27 unidades federativas, 12 podem perder a metade ou a totalidade das terras indígenas caso a tese do marco seja aprovada. Ceará, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco, Paraíba, Rio de Janeiro, Sergipe e Mato Grosso do Sul perderiam de 49% a 80% dos territórios. Já Distrito Federal, Piauí e Rio Grande do Norte sumiriam do mapa de terras indígenas – os três possuem apenas um território cada”.


Conforme as Disposições Constitucionais Transitórias, caberia à União, em até cinco anos, demarcar todas as terras indígenas no País. A omissão do Poder Público favoreceu a ofensiva à margem da lei de latifundiários e garimpeiros para explorar economicamente esses territórios. Um parecer emitido pela AGU (Advocacia Geral da União) em 2017, já sob o governo de Michel Temer (MDB), procurou atribuir ares de legalidade a uma causa absolutamente inconstitucional.


Nesta semana, o STF retomou o julgamento do marco temporal. Até o momento, o placar é de 4 votos a 2 a favor dos indígenas. A deliberação ditará a sorte do nefasto Projeto de Lei (PL) 490/2007, que muda as regras para a demarcação de terras ligadas aos povos originários. O projeto já foi aprovado, neste ano, na Câmara dos Deputados e, agora, está no Senado. Com bom senso, o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), suspendeu a tramitação do tema entre os senadores, à espera do resultado definitivo do Supremo.


É preciso rejeitar integralmente o marco temporal tanto no Judiciário quanto no Legislativo. A Constituição diz claramente que as “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” consistem em bens da União. Por isso, urge que o governo Lula, uma vez mais respaldado pelo STF, acelere a demarcação de dezenas de territórios indígenas que ainda estão sem amparo oficial.


O progresso e a soberania do Brasil – causas motrizes da EngD (Engenharia pela Democracia) – são imperativos inadiáveis, mas não à custa do massacre das populações originárias. Com base em mais de 300 estudos, a ONU concluiu, em relatório de 2021, que os povos indígenas e as comunidades tradicionais são “os melhores guardiões das florestas” no continente latino-americano e caribenho.


“As taxas de desmatamento na América Latina e no Caribe são significativamente mais baixas em áreas indígenas e de comunidades tradicionais onde os governos reconhecem formalmente os direitos territoriais coletivos. Melhorar a segurança da posse desses territórios é uma maneira eficiente e econômica de reduzir as emissões de carbono”, expressa o relatório.


Na mesma linha, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil elaborou, recentemente, um estudo em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Comissão Arns, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade. De acordo com o levantamento, o marco temporal, se aplicado, vai agravar o aquecimento global, aprofundar as mudanças climáticas e comprometer a integridade da sociobiodiversidade amazônica.


Para além do nosso continente, estima-se um total de até 500 milhões de indígenas no mundo hoje, em 90 países, representando 5 mil culturas. A disputa em jogo no Brasil terá reflexo no futuro de povos indígenas de todo o Planeta. O País está diante de uma encruzilhada civilizatória. Não ao marco temporal!

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