Considero o cidadão Steve Bannon a personalidade recente que foi mais hábil na compreensão dos tempos que vivemos. Um ser execrável e com atitudes que levaram o mundo a um abismo fascista? Sim, com certeza. Porém, este americano de olhar sombrio, merece, em minha opinião, o título de cidadão da década, por ter compreendido a nova era política e tecnológica que vivemos, muito antes da maior parte dos movimentos e partidos considerados progressistas. Bannon é, como classificou o autor italiano Giuliano Da Empoli, um verdadeiro engenheiro do caos.
O filósofo alemão Peter Sloterdjik designa em seu livro “Ira e Tempo”, o conceito de “banco de ira”. Segundo o autor, toda sociedade possui internamente um certo grau de ira, que é acumulado de acordo com os problemas e adversidades sociais, econômicas, políticas e culturais que se impõem diante dos indivíduos e de suas comunidades. Embora essa ira tenha uma organização caótica e complexa, ao longo da história certas instituições souberam compreender o fenômeno e conseguiram “organizar” este banco de ira em determinadas direções a seu favor.
Durante muitos séculos, as Igrejas tiveram este papel de organizadores da ira das multidões, canalizando potenciais energias rebeldes em ações de fé direcionadas às pautas de emancipação moral do indivíduo, e conduzidas através dos dogmas eclesiásticos. Ao longo do século XX, com certa perda de aderência e poder das igrejas, foram os partidos políticos que souberam captar e organizar uma grande parcela desta ira da sociedade. Lenin, por exemplo, haveria compreendido que um partido central deveria captar os anseios anárquicos dispersos da sociedade russa em torno de uma ideia mais potente e organizada. A ira em favor de uma revolução organizada.
Atravessado o século XX, igrejas e partidos se mostraram desgastadas e já incapazes de exercer o papel de organizadores do banco de ira contido na sociedade. Os partidos imersos na onda das democracias liberais, de certo modo também perderam sua credibilidade de organizadores dos anseios populares. Mesmo aqueles partidos classificados como progressistas, perderam boa parte de sua potência de organização dos anseios populares, uma vez que também se inseriram na lógica da política eleitoral e no jogo burocrático da viabilização do poder político a cada ciclo de 4 anos.
Desde então, final do século XX para os tempos atuais, este conjunto de forças e energias revoltosas que se formatam diariamente na sociedade, seja via aspirações revolucionárias ou contra-revolucionárias, ficou vagando no subterrâneo das comunidades humanas, sem um polo canalizador capaz de compreender sua localização e a forma de captação desta ira social.
Inegável dizer que a grande novidade tecnológica das últimas duas décadas tem sido a inserção - cada vez maior em nossas vidas - do mundo digital e da internet. E basta acessar qualquer portal de notícias, blog, rede social, plataforma de mensagens ou até mesmo um ambiente de jogos online, para compreender que o tal banco de ira da sociedade circula de forma exaustiva e desordenada através das interações sociais e mensagens virtuais que transitam na rede mundial de computadores.
E é neste ponto que voltamos ao personagem inicial do texto. Steve Bannon e seus pares, os engenheiros do caos, souberam como poucos fazer a leitura do funcionamento destas redes e interferir para o seu próprio proveito nessas estruturas virtuais caóticas. Aprenderam a sensibilizar a ira da comunidade online em favor dos movimentos políticos de um capitalismo nacionalista de ultradireita.
Ecoaram a voz de uma parcela raivosa daqueles que sentiam excluídos do sistema político e econômico tradicional. E que ódio seria esse? Um ódio com direção dupla: não tão somente direcionado aos movimentos e pautas progressistas, mas também um ódio endereçado às elites econômicas das democracias liberais, que pouco souberam captar, ou até mesmo foram cegas, a tais demandas dos marginalizados do sistema.
“Se você está mal hoje, em crise existencial, é porque as elites econômicas e os movimentos progressistas ceifaram sua liberdade, lhe oprimiram e o excluíram do sistema”.
Entendendo o algoritmo de engajamento das redes sociais, criaram uma fórmula de sucesso de divulgação deste tipo de sentimento nos ambientes virtuais, através de quatro movimentos principais:
Bombardeio de notícias falsas;
Dispersão em massa de notícias customizadas de acordo com o perfil do leitor;
Criação e disseminação de avatares (robôs) virtuais, que compartilham mensagens de ódio e de apoio ao movimento;
Formatação de gabinetes virtuais de fermentação do ódio.
De forma habilidosa, em cada país, os engenheiros do caos selecionaram um representante-mor que vociferasse de forma centralizada e sem papas na língua este ódio antissistema enamorado da linguagem de movimentos fascistas. Nos EUA, Donald Trump; na Itália, Matteo Salvini; na Hungria, Viktor Orban; no Reino Unido, Boris Johnson, no Brasil, Jair Bolsonaro. Esta fórmula de ira canalizada viajou com sucesso eleitoral mundo afora.
E então, surge a pergunta natural, que deixo aqui para reflexão:
Como contrapor este sistema de ódio arquitetado pelos engenheiros do caos da ultradireita?
Teríamos - dentro da engenharia progressista - inteligências capazes de construir redes de fortalecimento da democracia? Seria possível engenheirar caminhos que condicionem bem-estar social, soberania e liberdades culturais? Seria possível, nesta era virtual, que a engenharia ajude a confeccionar redes de construção de sonhos ao invés de redes de construção do caos?
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