Recentemente, na fila de uma farmácia, havia um menino em idade de alfabetização praticando a leitura dos rótulos dos produtos ao seu alcance. Naturalmente, o rótulo de “shampoo”, ele leu “xam - pô”.
Esta cena me remeteu para a década de 1960. No começo desta década, em 1962, eu tinha mais ou menos a idade do menino referido e entrei no primeiro ano do curso primário, começando também o meu processo de alfabetização. Em algum momento desta época, percebi que havia um local no centro da minha cidade do interior, Sorocaba, SP, identificado com a placa “boîte”. Qual não foi a minha surpresa quando ouvi das pessoas se referindo ao local como “bo-a-te” e não “boi-te” como eu achava que deveria ser. Claro que com o passar do tempo percebi que havia outras palavras que não se coadunavam com as regras ortográficas do português que eu aprendia na escola. Tais estrangeirismos não eram muito numerosos no nosso cotidiano daquela época, diferentemente do vocabulário usado atualmente aqui no Brasil.
Não tenho nada contra estrangeiros, pelo contrário, e também não acho que devamos viver isolados do resto do mundo. Claro que, se na interação entre sociedades ou povos não houvesse fortes influências e trocas de experiências umas com as outras e tendo como consequência a adoção progressiva de palavras e traços culturais dos diversos povos envolvidos, podemos imaginar com a licença de um certo exagero da minha parte, que muitos povos europeus ainda estariam falando o Latim Clássico, ou ainda soariam línguas que já caíram em desuso há muito tempo. Porém, o processo de formação e desenvolvimento das línguas faladas atualmente nos diversos países europeus - restringindo a este continente para facilitar a argumentação e a apresentação deste artigo - demorou vários séculos, de forma que os povos tiveram um tempo suficiente para formalizar, desenvolver e se adaptar às regras lexicais.
O nosso caso do uso intensivo de estrangeirismos no cotidiano, porém, está ocorrendo num período de poucas décadas e uma das consequências deste uso indiscriminado de palavras estrangeiras nas nossas comunicações contribuem, acredito, para aumentar ainda mais o enorme fosso que separa as classes sociais no nosso país, aprofundando a nossa característica de sermos uma sociedade de castas imiscíveis.
O meu caso e o do menino da farmácia caracterizam-se pelo fato de pertencermos a classes sociais que têm a oportunidade de tomar conhecimento da existência e do uso de palavras estrangeiras e os seus significados, tendo também a oportunidade de distinguir o que é a língua materna e o que são as línguas estrangeiras. Enfim, temos maiores chances de entendimento e de adaptação aos novos tempos. Porém, ao pensar no conjunto da população, acredito que as classes menos favorecidas são particularmente prejudicadas por estes bombardeios intensivos e incessantes de estrangeirismos.
Minha principal preocupação com este fenômeno refere-se às dificuldades que são criadas para as classes menos favorecidas. Acho que não é novidade para ninguém que no nosso país, de forma geral, as escolas, recursos e infraestruturas oferecidas para as crianças das classes menos favorecidas são muito deficientes, deixam muito a desejar. Consequentemente, o nível do domínio da língua que atingem é sofrível, para dizer o mínimo. Hoje mesmo, por exemplo, ouvi um rapaz na faixa dos 20 anos dizer para a namorada algo como “nóis num vai ir...”. Prezado leitor, acho que você também vai ouvir ou se lembrar de muitos exemplos destes tipos de dificuldades ao transitar no meio da população em geral.
Agora, imagine a chance de a população em geral entender todo o palavreado estrangeiro que é usado despreocupadamente nos meios de comunicação em geral e também por parcelas expressivas da população mais favorecida pela sorte. Além do mais, há muitos exemplos do palavreado estrangeiro utilizado em nosso país, que não é usado exatamente da mesma forma nos próprios países de origem destas palavras. Tive a oportunidade de ler em textos, em ambientes profissionais, a criação do “verbo” “bypassar”. Alguém escreveu algo como “by-passando-se sei lá o que....”, ou seja, há dificuldades para lidar com desvios.
De maneira geral, observa-se que as pessoas não gostam de admitir, ou dizer francamente, que não sabem a resposta para alguma questão ou problema apresentado. Imagine uma pessoa que não entenda exatamente o sentido das palavras estrangeiras utilizadas, normalmente não vai pedir esclarecimentos por conta do seu constrangimento e sua hesitação em admitir que não sabe. A consequência óbvia é a falha na comunicação, a falha numa das principais funções da língua que é a comunicação clara e precisa entre os falantes. Faz alguns meses meus colegas fizeram algumas brincadeiras comigo porque eu ainda não havia percebido o significado da expressão “dar um spoiler” e que está sendo usada intensivamente nestes nossos dias.
Tendo em vista que o uso exagerado de todos os estrangeirismos não se enquadra exatamente nas normas da nossa língua, um dos resultados deletérios é a deturpação das possíveis ideias ou conceitos que se pretende transmitir. Não pretendo entrar num debate de semântica ou de qualquer outra forma de entendimento dos significados das ideias e das palavras, porém, me parece óbvio que a norma culta da língua estabelece os padrões dos diversos significados, de forma a propiciar e facilitar a comunicação entre os falantes da língua. Os autores das obras literárias e os trabalhos acadêmicos nos mostram a língua em sua plenitude, em suas nuances, em seus significados, em suas dissimulações, em suas armadilhas, em sua vivacidade. Gosto das frases do Caetano: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”, “Gosto de ser e de estar”.
Em nome da clareza e da precisão da comunicação, a imprensa falada e escrita, bem como os diversos setores que se comunicam com o público deveriam ter um maior cuidado para evitar o uso exagerado dos estrangeirismos. No entanto, ao ouvirmos ou lermos jornalistas e comunicações públicas em geral, o que se vê é uma avalanche de estrangeirismos para descrever assuntos para os quais a nossa língua dispõe de todos os vocábulos necessários e o resultado é algo como: cada um entende o que bem entende.
A língua viva deve ser cuidadosamente alimentada pelos seus falantes. A falta de uma alimentação adequada a leva, inevitavelmente, para a sua deterioração, falência e extinção.
Então, pensei em propor ao leitor uma lição de casa. Nas últimas 4 ou 5 semanas, compilei os estrangeirismos que li ou ouvi nos meios de comunicação ou nas conversas que participei ou ouvi. Claro que, por conta deste bombardeio incessante que sofremos, não é nada fácil se ater às normas da língua materna, além de muitos termos advindos das novas tecnologias desenvolvidas que na maioria das vezes são, simplesmente, passivamente, adotados sem nenhum esforço em procurar seus equivalentes na nossa língua. A língua inglesa acaba sendo dominante nestas áreas das novas tecnologias por inúmeras razões que não cabe aqui discuti-las. Minha proposta ao leitor é que procure formular frases em português da década de 1960 usando os vocábulos ou expressões correspondentes às palavras estrangeiras que compilei e apresento a seguir. Começo apresentando 10 frases que selecionei ao acaso e que copiei da imprensa escrita. Então leitor, como você falaria as 10 frases seguintes em português?
1) Compliance: Procurada, a empresa diz que "todas as contratações realizadas pela empresa seguiram rigorosamente suas políticas de compliance e as legislações vigentes".
2) Fazer top less: ...O que aconteceu. A atriz publicou uma imagem sensual em seu perfil nesta segunda-feira (18), em que está em frente à janela fazendo topless,...".
3) Fazer check in: Para fazer seu web check-in você precisa ter em mãos o código localizador do seu bilhete.
4) Fazer check out: "Fui muito bem atendido neste hotel em julho de 1993, e ao fazer o check-out, levei de forma leviana para que eu e minha namorada na época pudéssemos dormir no carro e continuar nossa viagem pelo Brasil" expressou no texto, ....
5) Cashback: O cashback previsto na reforma tributária pode beneficiar 73 milhões de pessoas. Parte da devolução virá automaticamente em contas como a de...
6) Look: Chinelo de dedo, blusa listrada e jaqueta bordada: essa é a base do look dos atletas brasileiros para a cerimônia de abertura das ...
7) Delivery: ...Como montar um bom delivery de comida? · 1. Escolha os canais de venda · 2. Defina os produtos · 3. Organize a logística das entregas ...
8) Test-drive, checklist: Guia do test-drive: um checklist para você não se esquecer de nada.
9) Start: E isso deu um start nela para cuidar mais da saúde física e mental.
10) Bullying: Ela era muito tímida e sofria com bullying, mas no dia em que ela defendeu alguém - ela não se defendeu, ela defendeu os amigos, ela viu que era forte.
Em seguida, leitor, procure formular frases em português da década de 1960 usando os significados ou ideias das palavras estrangeiras e expressões que relaciono a seguir:
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É claro que muitos de vocês ainda nem tinham nascido na década de 1960, porém, acho que sempre cabe a pergunta, afinal, qual é a sua língua materna?
Pedro Pereira de Paula
Caxambu, 03 de junho de 2024.
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