Por Cládice Nóbile Diniz, Lara Fernanda Modolo Ducci e Odete dos Santos
1. A Tipificação do Assédio Sexual
Ainda nos rescaldos de convulsionadas falas opinativas nas mídias digitais e redes sociais sobre assédio sexual ocorrido no primeiro escalão do governo brasileiro em tempos recentes, com jornalistas, artistas, intelectuais, políticos, partidos, instituições e, entre outros, sobretudo, os cidadãos se posicionando a respeito, com os mais diversos argumentos e posicionamentos, se oferece ao público da EngD algumas informações necessárias para se pensar sem preconceitos e democraticamente a respeito, para o melhor entendimento do assunto.
O assédio sexual é de tal forma nocivo e recorrente, que se encontra bem estudado e caracterizado como crime no Código Penal, a Lei n. 10.224, de 15 de maio de 2001[1], reforçada pela Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009[2]. Suas principais características são a de ser ato o ato de constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual para si e/ou terceiro(s), valendo-se de ser seu superior hierárquico ou de ter ascendência devido ao ambiente laboral, pessoa essa momentaneamente vulnerável; e agindo de forma desagradável, ofensiva e impertinente para causar constrangimentos vários à vítima, dificultando-lhe reação e denúncia[3]. Por haver a ascendência hierárquica se diz tratar-se de assédio sexual vertical.
Se fato ocorreu entre pessoas de mesma hierarquia/poder, ele não está automaticamente na Lei classificado como crime; e se diz ser assédio sexual horizontal, com tratamento daqueles de mesmo teor praticados em outros ambientes, considerados como crimes de importunação sexual[4],
Esses atos e comportamentos se distinguem, portanto, radicalmente das paqueras inconvenientes, dos mal sucedidos convites a alguém para sair ou do rejeitado se declarar para alguém, ainda que envolvam patrão e empregado ou colegas de trabalho. O assediador não é movido pelo amor e/ou paixão, mas sim, por lascívia perversa que, para ser atendida, limita ou viola a liberdade sexual do assediado por meio de convites ou investidas, conforme explica Dorgival Júnior em 2016, no artigo "Paquera ou tentativa de namoro não é assédio sexual”[i], texto esse que comenta a negativa em juízo de se considerar que convites para sair de um gerente a uma trabalhadora de um determinado caso em julgamento fosse caracterizado como assédio sexual.
2. O Ciclo do Assédio Sexual e seus Danos ao Ambiente de Trabalho
De maneira geral, se observa que os comportamentos e atitudes bem aceitos pela sociedade não são consideradas assédio sexual, como elogios sem conotação maliciosa e flertes correspondidos.
Portanto, não se deve embarcar nos raciocínios equivocados, que à simples menção de algum caso de assédio sexual, se voltam a buscar justificativas para o criminoso em detrimento da vítima. Melhor é buscar entender como se deu o fato e encontrar soluções para evitar novos episódios, pois os estudos dos casos ensinaram que a gravidade das ações aumenta progressivamente, segundo explanou a advogada Mayra Cotta, em curso proferido na Controladoria-Geral da União, no mês de maio de 2023, onde destacou o caráter cíclico do assédio sexual e apresentou o desenho desse movimento, reproduzido na nota técnica n. 3285/2023, da Controladoria-Geral da União (CGU), atendendo a um processo, figura à qual se reproduz na fig.1 (CGU, 2023a, p.5)[5].
Figura 1 - Ciclo do Assédio
Fonte: Mayra Cotta (2023) apud CGU (2023, p.5).
Observe-se que devido a esse aspecto de incremento progressivo, uma forma de se prevenir o assédio sexual é buscar solução em suas manifestações iniciais, criando-se nos ambientes de trabalho uma cultura de enfrentamento ao assédio sexual, para o que as informações para o entendimento do assunto são imprescindíveis.
3. As Orientações do Guia Lilás
Em março de 2023, a Controladoria-Geral da União (CGU) editou o Guia Lilás – Orientações para prevenção e tratamento ao assédio moral e sexual e à discriminação no Governo Federal, que apresenta conceitos e exemplos de atos, gestos, atitudes e falas que devem ser evitados porque podem ser entendidos como atos de assédio moral ou sexual ou, ainda, de discriminação; apontando ainda orientações para prevenção, assistência e denúncia, entre outras informações úteis para o enfrentamento dessas práticas abusivas (CGU, 2023b).
Essas orientações são bons guias também para orientar os demais ambientes de trabalho no país na busca de suas melhorias contínuas, encontrando-se nele a definição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para o assédio sexual como sendo as “insinuações, contatos físicos forçados que devem caracterizar-se como condição para dar ou manter o emprego, influir nas promoções ou na carreira do assediado, prejudicar o rendimento profissional, humilhar, insultar ou intimidar a vítima”.
O Guia Lilás alerta sobre as consequências do assédio para o trabalho, que se pode verificar no quadro 1.
QUADRO 1 - Danos do Assédio Sexual para a Pessoa Assediada
Fonte: CGU, 2023b, p.15.
Nessa situação, o ambiente se torna ruim não apenas para o assediado, e sim para todos, inclusive para a produtividade. Por isso, as campanhas contra o assédio sexual estão em alta nas empresas e na mídia.
O Guia Lilás alerta sobre as condutas que devem ser evitadas e repelidas, contra as quais as campanhas são necessárias, sendo elas aqui apresentadas no quadro 2.
QUADRO 2 – Comportamento e Atitudes Sexualmente Assediantes a Serem Evitadas e Repelidas
Fonte: CGU, 2023b, p.14.
Observe-se que o assédio sexual não implica que o assediante seja do sexo masculino e a vítima, mulher.
4. Um Método de Análise dos Casos
O ambiente laboral precisa de parâmetros para agir nos casos de assédio sexual com que se depara. A CGU indica um caminho para o enquadramento das condutas problemáticas na citada nota técnica n. 3.285/2023, adaptado do trabalho de Kathleen Kelley Reardon (Reardon, 2018 apud CGU, 2023a), que propõe das condutas inadequadas serem avaliadas considerando-se:
a) o contexto em que ocorreu;
b) o histórico de relacionamento entre os envolvidos; e
c) a combinação entre o tom do que foi dito e as ações não verbais.
A CGU também apresenta uma escala onde as condutas são escalonadas de leves a graves conforme se verifica no esquema da fig.2.
Figura 2 – Avaliação das condutas problemáticas
Fonte: Adaptação de Reardon (2018) por CGU (2023a, p.6).
Essa escala recebeu da CGU (2023a) simplificação para três tipos com fins de padronização da nomenclatura e de oferecer mais praticidade a seu uso, com as seguintes nomenclaturas:
a) "condutas de conotação sexual", que se refere tanto ao "assédio sexual" como às condutas de menor grau de reprovabilidade;
b) "assédio sexual", para condutas graves, de maior grau de reprovabilidade, como estupro, importunação sexual e contato físico íntimo indesejado, que devem necessariamente resultar na aplicação de penalidades expulsivas, segundo a nota técnica da CGU (2023a), que trata de casos ocorridos no âmbito da competência do governo federal; e
c) "outras condutas de conotação sexual", para condutas de médio ou baixo grau de reprovabilidade, como piadas ou conversas indesejáveis de conteúdo sexual, passíveis de sancionamento com as penas de advertência ou suspensão, também segundo a nota técnica da CGU (2023a) para os casos ocorridos no âmbito da competência do governo federal.
Portanto, observa-se que propõem de as condutas serem classificadas por assédio sexual, nos casos graves, ou por conduta de conotação sexual, para os outros casos. O assédio sexual, nessa proposição da CGU (2023a, p.8), refere-se “somente às condutas de natureza sexual, não consentidas, que impliquem utilização do cargo para obtenção de vantagem sexual ou tenham como efeito causar constrangimento e prejuízo a bens jurídicos relevantes, tais como a dignidade, a intimidade, a privacidade, a honra e a liberdade sexual de outro agente público ou de usuário de serviço público”.
Com o enquadramento da conduta dessa forma simplificada, os casos graves podem ser avaliados e as medidas disciplinares aplicadas rapidamente, de forma a restabelecer a harmonia no ambiente. Porém os casos classificados como “outras condutas de conotação sexual” não encontram resposta satisfatória em uma medida disciplinar genérica. Precisa ser ainda repensado, de maneira a proporcionar justiça e segurança nas decisões.
Enfim, tem-se que se trata de um campo do conhecimento que está surgindo, oferecendo aos profissionais que atuam na área de relações humanas nas organizações oportunidade de proporem metodologias inovadoras e democráticas.
NOTAS
[3] Assédio sexual, segundo o Art. 216-A da Lei nº 10.224, de 15 de 2001, é constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
[4] Importunação sexual, segundo o Art. 215-A da Lei nº 13.718, de 2018, é praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10224.htm. Acesso em
BRASIL. Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Disponível em: https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=12015&ano=2009&ato=13fQTWU90dVpWTaaf
BRASIL. Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo; e revoga dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13718.htm
CGU, Controladoria Geral da União. Norma Técnica n.3285 de 11de dezembro de 2023. Base de Conhecimento da CGU, 2023a. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/77812.
CGU. Controladoria Geral da União. Guia Lilás. Base de Conhecimento da CGU, 2023b. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/93176.
COTTA, M. Notas de curso proferido na CGU em 2023 apud CGU (2023a).
Júnior, D.T. N. Paquera ou tentativa de namoro não é assédio sexual. Justiça do Trabalho, 2016. Disponível em: [https://trt13.jus.br/informe-se/noticias/2016/03/paquera-ou-tentativa-de-namoro-nao-e-assedio-sexual-por-dorgival-terceiro-neto-junior-1].
Reardon, K. K. It is not always clear what constitute sexual harassment. Use this tool to navigate grays areas. In Havard Business Review, 2018. Apud CGU (2023a, p. 6).