Por Renato Dagnino
O artigo “Neoindustrialização para o Brasil que queremos”, de Lula e Alkmin, epigrafa que “Nos próximos anos, a indústria será o fio condutor de uma política econômica voltada para a geração de renda e de empregos mais intensivos em conhecimento e de uma política social que investe nas famílias”.
Este texto, apoiado nas discussões em que tenho participado no âmbito do Núcleo de Apoio às Políticas Públicas da Fundação Perseu Abramo (FPA) dedicado à Economia Solidária (NAPP-ES), trata do que ela pode contribuir para “... uma política social que investe nas famílias - trabalhadores de hoje e de amanhã”.
Ele endossa as prioridades ali declaradas e defendidas em todo o mundo pelas forças políticas progressistas, como “expansão da energia eólica e solar... tributação eficiente e justa ... redução de distorções alocativas... redução do uso de combustíveis fósseis... geração de maior valor adicionado ... construção de cadeias produtivas mais resilientes...”.
Também aceita que o País deve se preparar para “o novo momento da globalização”, “gerar renda e empregos mais intensivos em conhecimento” e que “a desindustrialização precisa ser interrompida”. Mas partindo da constatação de que ela foi uma opção de nossa classe proprietária, de que esta não se interessa pelo nosso potencial de conhecimento tecnocientífico público, e de que sua via de inserção no mercado global implica muitos privilégios, este texto busca contribuir, ajuntado coisas que apreendi nas discussões no NAPP-ES, para que essa preparação do País esteja ainda mais alinhada com o interesse de todos.
Seus marcos temporais são dois eventos que o NAPP-ES realizou e dois artigos de minha autoria.
No primeiro eles - “Para construir outra indústria nacional” – eu partia, como estávamos fazendo no NAPP-ES, daquelas mesmas prioridades. Mas sustentava que a estratégia do “emprego e salário” baseada no estímulo à atividade empresarial para geração de crescimento econômico, embora tivesse sido bem sucedida 20 anos atrás, não seria suficiente.
Muito alinhada com o nacional-desenvolvimentismo que por décadas orientou nossa política pública, ela era insuficiente para combater o legado de iniquidade, injustiça e degradação ambiental que iria receber o governo de esquerda.
O artigo ressaltava a conveniência de complementar aquela estratégia com uma outra, inspirada nas referências internacionais de “revolução industriosa”. Apoiada na estratégia de “trabalho e renda” e no potencial de geração de desenvolvimento da ES, o artigo delineava a proposta da “reindustrialização solidária”.
Sem pretender exclusividade e compreendendo que a conjuntura de forças políticas manteria o privilegiamento da “reindustrialização empresarial” e a captura privada do poder de compra do Estado, se mostrava a necessidade de sua realocação, por parte de um futuro governo de esquerda junto à ES.
Entre os argumentos indicados, se apontava que dos 180 milhões de brasileiras e brasileiros em idade de trabalhar, apenas 30 tinham carteira assinada” e que existiam 80 que nunca tinham tido e provavelmente nunca teriam emprego.
O primeiro evento realizado pelo NAPP-ES, em abril de 2022, foi o seminário “Resistência, Travessia, Esperança”.
Nele discutimos com atores sociais de várias naturezas alguns dos requisitos para a consolidação da ES que estávamos explorando. Entre eles, a necessidade de conferir caráter transversal à ES, de aumentar a intensidade econômica e cognitiva das suas atividades, de reorientar a compra pública, de impulsionar as iniciativas de recuperação de empresas pelos seus trabalhadores e de impulsionar a proposta da reindustrialização solidária.
O segundo artigo, de julho de 2022, “O desafio de governar` e a ES”, repercute a discussão estávamos tendo no NAPP-ES acerca de como enfrentar os obstáculos políticos que se interpunham à materialização desses requisitos.
Ali se mostrava que era necessário evitar reproduzir o comportamento usual na experiência histórica internacional dos governos de esquerda que fracassaram em seu suas políticas socializantes. Sua dedicação em fazer funcionar o Estado e a economia capitalistas para obter recursos para custear a reorientação da política foi uma das causas históricas do insucesso desses governos.
Sua epígrafe “Políticas sociais tornaram-se reféns do bom funcionamento do capitalismo. Reconstruir democracia exigirá outra governança; e novos arranjos produtivos podem desatar nó górdio entre mercado e seguridade” antecipava a análise histórica da experiência internacional dos governos socialdemocratas que se seguia.
E sugeria que a proposta revisionista da ES, que reivindicava sua pertinência frente às mudanças do capitalismo global e nacional e evidenciava as vantagens de arranjos econômico-produtivos baseados na propriedade coletiva dos meios de produção, na solidariedade e na autogestão, deveria encontrar seu espaço no plano de governo que o NAPP-ES estava ajudando a formular.
O segundo Seminário “O Governo Lula e o potencial da Economia Solidária”, realizado pelo NAPP-ES em março de 2023, contou com a participação de companheiras e companheiros que a partir de suas posições no governo estavam retomando a elaboração da política de ES. Nosso objetivo central, coerente com nossa atribuição do NAPP era conhecer, sistematizar e divulgar esse processo. Além disso, queríamos avaliar como o esforço que havíamos realizado nos momentos anteriores, de ampliar a percepção sobre os temas que nos preocupavam havia sido incorporado ao repertório cognitivo das companheiras e companheiros que, agora, participavam do novo governo.
Estamos, agora, planejamento um novo evento também orientado em função do que vamos aprendendo e das recomendações da FPA acerca de como os NAPPs devem continuar seu trabalho.
Pretendemos realizar uma Reunião de Trabalho (workshop) sobre “A compra Pública e a Economia Solidária”, em que agentes públicos de diversas procedências serão convidados a tratar de dois insumos cognitivos para a elaboração da política de ES.
O primeiro, se refere àquilo que o Estado brasileiro compra, nos níveis federal, estadual e municipal (quase 18% do PIB) quase que exclusivamente das empresas. Tal como têm assinalado por vários analistas a orientação de parcela da compra pública para a aquisição de bens e serviços junto à ES é a melhor maneira, se não a única viável, de alavancar sua consolidação em consonância com os requisitos que identificamos.
A partir do insumo que a Reunião de Trabalho iniciará a conceber será possível, estimando a necessariamente crescente demanda governamental por bens e serviços de vários tipos, e alavancando junto aos movimentos da ES a capacidade de satisfazê-la, iniciar um processo sistemático de elaboração de medidas de política pública visando a sua consolidação.
O segundo insumo diz respeito ao que já foi denominado por analistas da ES como o “entulho burocrático-legal” que tem impedido incorporá-la ao sistema da compra pública.
A partir da informação acerca dos gargalos burocrático-legais que a Reunião de Trabalho começará a identificar, atores com eles envolvidos, como as trabalhadoras e trabalhadores da ES que sofrem suas consequências, d@s agentes públicos que se vêm impedidos de adquirir bens e serviços da ES e d@s situad@s em institutos de pesquisa e as as universidades, será possível promover sua remoção.
Esses dois insumos permitirão, ademais, fazer com que nossa proposta de “reindustrialização solidária” possa suplementar a da Neoindustrialização. Eles irão melhor orientar a construção, pelas universidades e organizações públicas e corporativas (como a dos Engenheiros pela Democracia), da plataforma cognitiva de lançamento da ES; a Tecnociência Solidária que a tornará capaz de competir com a empresa na alocação da compra pública.
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