Celso Santos Carvalho

Todos sabemos que o desafio para adaptar a cidade às mudanças climáticas é enorme.
Neste janeiro de 2025, a cidade de São Paulo sofreu vários eventos de chuvas intensas que causaram graves problemas. No maior desses eventos, o do dia 24 de janeiro, em apenas 3 horas registrou-se uma quantidade de chuva de 122 mm, que corresponde a 47% de toda a chuva esperada no mês.
Essa chuva concentrada em tão pouco tempo gerou inúmeros problemas, como a formação de enormes enxurradas nas ruas de vários bairros, como Vila Madalena, Lapa e Pompeia, além da inundação da estação de metrô do Jardim São Paulo e, mais uma vez, a interrupção do fornecimento de energia para milhares de residências. Chegamos ao final do primeiro mês da nova (velha) gestão municipal com a certeza de que a Prefeitura tem sido incapaz de preparar a cidade para essas chuvas intensas que, cada vez mais, são mais fortes e frequentes.
No meio do caos do dia 24 de janeiro, o vice-prefeito apareceu nos meios de comunicação para informar que a culpa das inundações é da… população!!, pois é ela que joga lixo nas ruas. O prefeito sequer apareceu, o que é até melhor do que vir a público para falar sobre o que não sabe. E se o responsável pela administração da cidade não conhece a causa do problema, será impossível acertar na solução, ou seja, os cidadãos vão continuar sofrendo a cada chuva mais forte, mesmo que, há vários anos, seja de conhecimento geral que o mundo passa por uma grave mudança climática.
O atual sistema de drenagem urbana não foi concebido para essa nova situação. Ele foi concebido para fazer com que a água escoe o mais rápido possível. A água que cai no telhado e no quintal das casas é coletada pelos ralos e vai para a sarjeta, onde encontra a água que caiu na rua e na calçada e, daí, vai para a boca de lobo, onde corre por tubos enterrados até o córrego canalizado que despeja nos rios maiores, também canalizados, que desembocam finalmente no Rio Tietê. Todo o percurso – quintais, sarjetas, galerias, córregos, rios – é impermeável e liso, para que a água escoe rapidamente.
Se a vazão da água que chega em um determinado ponto é menor do que a vazão que sai desse ponto, o sistema funciona bem. Mas se ao contrário, a vazão que chega é maior do que a vazão que sai, ocorre o transbordamento da galeria ou canal e a água escorre pelas ruas, formando enxurradas que arrastam carros, invadem casas, interrompem vias e os sistemas de transporte público, transformando a cidade num caos em poucos minutos. Quando a chuva que chega diminui, o sistema de drenagem consegue dar conta da vazão e a inundação se dissipa.
O sistema atual funciona para chuvas mais fracas, mesmo que sejam de grande duração, pois os tubos e canais conseguem conduzir a água. Mas se a chuva for muito intensa, como a que caiu no dia 24 de janeiro, a água dos telhados, dos quintais, das ruas e calçadas chega muito rapidamente nas galerias de águas pluviais, excedendo sua capacidade de escoamento e gerando as enxurradas e inundações.
É necessário adaptar toda a infraestrutura de manejo de águas pluviais aos novos tempos. Nas últimas eleições municipais, os programas dos candidatos Tábata Amaral e Guilherme Boulos, baseados no conhecimento científico desenvolvido nas nossas universidades e em muitos outros países, já apresentavam o diagnóstico aqui exposto e propunham a solução: é necessário reter a água de chuva nas partes altas e médias da cidade, diminuindo a velocidade com que ela chega nas galerias de drenagem nas baixadas e nos córregos e rios.
Uma nova concepção do sistema de manejo de águas urbanas é necessária. Ela envolve a construção de micro reservatórios de água (cisternas) que armazenam a primeira água que corre pelos telhados. Quando esses reservatórios se enchem, a água é direcionada para pequenos jardins de chuva construídos ainda dentro dos lotes, local em que parte da água já se infiltra no solo. Quando estes estão cheios, as águas vão para jardins de chuva nas calçadas e, só depois, é que vão para as galerias de drenagem. Além disso, parte das águas das ruas e das galerias é desviada para lagos e jardins de chuva e mini bosques urbanos, implantados nas ilhas das avenidas, nas praças e nos parques, onde se favorece a infiltração de maiores volumes. Finalmente, ao longo dos córregos maiores, se implantam parques lineares em nível abaixo das ruas, de modo que durante as chuvas eles se transformam em lagos temporários de acumulação de água.
Além de reter a água das chuvas, diminuindo a velocidade com que esta chega nas galerias de drenagem nas regiões de baixada, esse sistema de manejo de águas permite a associação com a implantação de mini bosques urbanos, formado por espécies vegetais dos mais variados portes, arbustos, pequenas árvores, folhagens, que não causam problemas para a rede de distribuição de eletricidade e aumentam o conforto térmico na cidade, atenuando os picos de temperatura que contribuem para a formação das tempestades.
É claro que esta proposta implica uma verdadeira revolução e não pode ser implantada de forma completa de uma hora para outra. Mas uma administração municipal responsável e capaz tem a obrigação de se organizar para isso, pois o clima já mudou e essa mudança não tem volta. Sem uma ação efetiva do poder público, vamos ter que conviver daqui a pouco com episódios de grandes inundações toda semana.
A implantação dos pequenos reservatórios e jardins de chuva nos lotes pode ser iniciada imediatamente pelos prédios públicos, como escolas, hospitais, bibliotecas municipais e estaduais. A prefeitura pode exigir que sejam obrigatórios em todos os edifícios novos, bem como estabelecer um prazo para que os grandes estabelecimentos privados, como estacionamentos, supermercados, hiper lojas etc. implantem os elementos de retenção e infiltração nos lotes. Ações de propaganda de interesse público, eventualmente complementadas com fornecimento de assistência técnica, financiamento ou isenção de impostos, permitem mobilizar a população para esta mudança de paradigma.
Paralelamente é possível desde já iniciar a implantação de jardins de chuva nas calçadas, nas ilhas mais largas no meio de avenidas, nas praças e parques, formando pequenos lagos e bosques para retenção de água e atenuação das ondas de calor, bem como as dezenas de parques lineares aprovados no Plano Diretor Estratégico de 2014 que, vinte e um anos depois, não foram ainda construídos.
No entanto, mesmo que essa intervenção seja planejada de forma adequada, iniciando-se nas bacias hidrográficas com histórico de inundações frequentes, é claro que seus efeitos serão a longo prazo.
Dessa forma, é necessário que a mudança de paradigma no manejo das águas urbanas seja acompanhada pela concepção e implantação de um sistema moderno de proteção e defesa civil. O atual sistema, em que a defesa civil emite um aviso do tipo “risco de chuvas intensas na zona oeste da cidade” é completamente ineficaz. A prefeitura deveria começar divulgando imediatamente quais são os pontos específicos de alagamento frequentes na cidade, uma informação já disponível no sistema municipal de dados urbanos georreferenciados, para que cada cidadão possa planejar suas rotas alternativas nas situações de chuvas intensas.
Além disso, tendo o mapeamento dos locais críticos e conhecendo a intensidade de chuva que causa os alagamentos, é possível, com base na previsão meteorológica e no monitoramento pluviométrico, isolar preventivamente os trechos críticos, transmitindo essa informação para os aplicativos de navegação que a partir daí traçam caminhos alternativos para os usuários de veículos particulares. O mesmo pode ser feito com as empresas de ônibus. Finalmente, as equipes de apoio ao trânsito, defesa civil e corpo de bombeiros devem estar a postos nos locais críticos sempre que as condições de chuva indicarem risco de alagamentos.
Todos sabemos que o desafio para adaptar a cidade às mudanças climáticas é enorme, especialmente numa cidade como São Paulo, mas há inúmeras experiências já desenvolvidas em várias partes do mundo que permitem à prefeitura conceber e iniciar a implantação, desde já, de um plano de intervenção abrangente. Algumas dessas propostas podem não ser suficientes, as chuvas podem atingir um nível ainda maior de intensidade, outras podem se demonstrar de difícil manutenção, e seguramente outras ainda podem e devem ser concebidas a partir da nossa própria experiência e do acompanhamento de sua evolução por parte das nossas universidades e institutos de pesquisa.
Para isso, é necessária uma postura de estadista por parte dos administradores. Os desafios de uma cidade como São Paulo exigem mulheres e homens públicos de grande capacidade política e intelectual que pensem longe e que valorizem o conhecimento científico e a participação social.
O que não podemos aceitar, nunca mais, é a arrogância, a postura anticientífica, a valorização da ignorância e o desprezo à inteligência dos cidadãos por parte dos nossos administradores.
Celso Santos Carvalho é Engenheiro civil, mestre e doutor em Engenharia pela Escola Politécnica da USP e membro da Rede BrCidades.
Publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/cidades/o-que-sp-precisa-fazer-para-evitar-enchentes-por-celso-carvalho/
Um alerta super importante que mais uma vez reforçamos. A necessidade de adaptação com a revisão a política de manejo da drenagem urbana da cidade de São Paulo. Redimensionamento das vazões e tempos de recorrência compatíveis com os novos e intensos volumes de chuvas rápidas e aumentar a resiliência urbana com soluções baseadas na natureza: parques lineares, jardins de chuva, cisternas nos lotes