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Por José AravenaReyes

Será Automatizável a Engenharia?


Por José Aravena Reyes


Vivemos um momento da história que é descrito por diversos personagens como um ponto de inflexão da civilização humana. Yuval Noah Harari, por exemplo, nos dá 21 lições para o futuro e todas elas, umas mais outras menos, nos alertam sobre o impacto que as tecnologias disruptivas (principalmente as info e biotecnologias) irão provocar nas próximas décadas.


Dessa perspectiva (que não é exclusiva do historiador judeu) somos praticamente obrigados a pensar que a engenharia está profundamente implicada na narrativa futurista.


Porém, mais do que afetados, parece que os engenheiros estão do outro lado: daqueles que afetam o curso da civilização, mesmo quando não tenham plena compreensão das consequências que já estão provocando as transformações em curso.


Certamente que um grau de empatia dos engenheiros com o futuro da humanidade seria altamente salutar, mas a categoria tem demonstrado por muito tempo que o silêncio também lhes favorece, pois de certa forma se consideram à margem dos efeitos mais devastadores, como poderia ser o desemprego crônico produto da impossibilidade de serem absorvidos nos novos modelos produtivos.


Acreditamos que os irrelevantes não serão engenheiros.


Talvez isto esteja em consonância com os estudos sobre o futuro do emprego face à automação globalizada promovida pela Revolução 4.0. De fato, parece que os engenheiros são os operadores qualificados desse processo de robotização crescente e talvez, como parte das suas funções, sejam eles mesmos os que tornarão irrelevantes outros humanos que nunca tiveram condições de escalar a montanha do aprimoramento cognitivo. Especificamente, no setor da construção, por exemplo, uma automação crescente significará um contingente crescente de trabalhadores sem sentido para o novo modelo produtivo e serão, portanto, os candidatos naturais a procurar outras ocupações. A pré-fabricação, a estandardização, a industrialização irão requerer muito menos trabalhadores que aqueles necessários para suprir a demanda do formato que inspira o atual canteiro de obra. Mais ainda: os poucos trabalhadores necessários às operações da Construção 4.0 deverão estar devidamente qualificados para participar dos novos processos produtivos e das suas particulares formas econômicas. Nesse contexto talvez nem sejam empregados ou simples operadores; hoje, o incentivo ao empreendedorismo é transversal.


Aparentemente, a condição de estar a salvo é tranquilizadora. A perspectiva mais pessimista do futuro do emprego que a quarta revolução pode provocar nos Estados Unidos – tese desenvolvida por Carl Frey e Michel Osborne em 2013 – coloca os engenheiros trabalhando em conjunto com as máquinas, como grandes parceiros do novo mundo, embora com a tendência, no longo prazo, do setor engenheiril ser também absorvido pela automação crescente.


O argumento é plausível.


Para os autores, as engenharias se caracterizam pelo uso de um tipo de inteligência chamada criativa, portanto, caracterizada como um tipo de atividade difícil de traduzir em procedimentos formais ou automatizáveis. Daí que só depois de um longo período de tempo os estudos de algoritmos inteligentes poderão revelar possibilidades reais de desenvolver computacionalmente as características cognitivas dos criativos atos dos engenheiros, embora não se especifique de qual engenharia se está falando.


Um recente estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) aplicou o mesmo modelo da pesquisa estadunidense para analisar o impacto da automação no Brasil e concluiu que “o panorama de baixa qualificação e baixa utilização de habilidades de alto nível nas ocupações brasileiras – particularmente, as cognitivas, em design e engenharia e em tecnologia da informação – indica uma alta vulnerabilidade do país às novas demandas tecnológicas”.


Embora com perspectivas diferentes, ambas as pesquisas consideram que as atividades com maior possibilidade de automação são aquelas de tarefas repetitivas e, contrariamente, as de menor possibilidade de automação, as de cunho analítico, decisório ou interativo.


Tal perspectiva permite concluir que não é exatamente a profissão a que está à salvaguarda da automação, senão a característica predominante de juízo e raciocínio criativo que parece existir nela. O limite real de sobrevivência das futuras profissões está entre aquilo que pode ser automatizado e aquilo que não; não exatamente em tal o qual profissão. Portanto, não se trata de que a engenharia está a salvo, senão que existe uma forma específica de engenharia que, se não é formalizável, não poderá ser automatizada; No estudo de Frey e Osborne se argumenta que na engenharia, os atos serão desvendados no longo prazo, mas isso é valido só na medida em que a engenharia continuar a se caracterizar por usar a inteligência criativa. O raciocínio não se cumpre se a premissa muda; se a engenharia se torna puramente operativa suas chances de automação aumentam.


Deve ser este o motivo que preocupa a diversos setores econômicos e acadêmicos do Brasil que lutam com afinco por uma mudança nos rumos na formação do engenheiro. A engenharia global está mudando e os processos criativos que a caracterizam exigem novos processos formativos, porém alguns setores acadêmicos são resistentes às transformações e não se sentem chamados a realizar mudanças significativas nos processos formativos. Como sinaliza Vanderli Fava de Oliveira, presidente da ABENGE (Associação Brasileira de Ensino de Engenharia), é necessário mudar primeiro a mentalidade acadêmica, pois de certa forma, mais do que qualquer outra coisa, as resistências são produto da predominância de modelos mentais fixos. Oliveira considera que o momento atual representa uma época de oportunidades para dar valor à engenharia nacional, o que não significa que a engenharia esteja desvalorizada como apontam alguns profissionais que lembram orgulhosos da outrora presencia dos profissionais nas altas esferas da definição de políticas de desenvolvimento nacional, mas pode sugerir a possibilidade de uma desvalorização futura, caso exista um descompasso entre o desenvolvimento global e nacional da profissão.


Colocado desta maneira, trata-se de potenciar o valor social da engenharia.

Gilbert Simondon oferece outro quadro de compreensão muito interessante para identificar de que forma se constitui o valor do ato técnico na sociedade, quadro este que pode ser facilmente transferido ao domínio da engenharia.


A primeira tarefa de Simondon é se distanciar das teorias que se envolvem em homéricas lutas para estabelecer a universalidade ou relatividade dos valores sociais. A sua compreensão é de que adquire valor social aquilo que é mediado na esfera coletiva, entendida esta como espaço de ampliação ou projeção do destino coletivo.

Aqui o ponto é inserir uma dimensão temporal na estrutura coletiva; uma dimensão que permita projetar seus membros para regiões mais distantes do presente imediato já estruturado em termos de obrigações ou normativas sociais.


Simondon reconhece no ser técnico, e por consequência no engenheiro, um valor intrínseco que possui poder social porque permite ao coletivo atingir um mundo que é escuro e inacessível sem ele. O ser técnico tem acesso direto aos objetos técnicos que são escuros e incompreensíveis para o coletivo. É o ser técnico que estabelece o diálogo com esse objeto e o coletivo participa desse mundo desconhecido através dessa característica própria do ser técnico.


O que se considera valor no ato técnico é algo que se agrega ao coletivo; o ser técnico amplia o coletivo mediante sua atividade técnica de modo que através dele se inventa um mundo e na abertura provocada pelo ato inventivo, proliferam novas condições técnicas que abrem outros novos mundos imprimindo a temporalidade do progresso, ou melhor, do processo civilizatório do qual o coletivo participa.


Manuel Castell considera que o valor econômico é de ordem cultural, e de fato, Simondon considera que a cultura é o lugar onde se representa simbolicamente o valor coletivo do ato técnico. Assim, o valor do ato técnico tem poder civilizatório porque pertence à cultura de uma comunidade; produz um sentido de liberdade à sociedade; um sentimento de devir livre que se abre como destino para essa coletividade em função da atividade técnica.


As novidades oriundas do ato técnico reestruturam a sociedade elevando seu sistema de valores a novos patamares e modificando as próprias condições de contorno para os novos atos técnicos. É como se se constituísse uma rede de interfaces técnicas, um processo temporal de devir social pautado nas aberturas que o ser técnico promove. As novidades são absorvidas e integradas à vida coletiva até o ponto de serem traduzidas ou estabilizadas em uma nova estrutura social, atualizando seus valores e normativas.


O mais interessante desse processo – e que talvez tenha relação direta com aquilo que deve representar valor no novo modo produtivo global – é o papel que tem a inteligência criativa na formação dos valores sociais.


Para Simondon, é necessário distinguir atividade técnica de trabalho.


Trabalho, para ele, é a atividade técnica que perdeu seu segredo: não opera mais sobre um domínio que está oculto à coletividade; ele é a simples repetição de um ato necessário para a manutenção da estrutura de valores do coletivo, mas que não possui a potência de abrir horizontes de destino, porque o ato todo já foi relevado.

Nesse sentido, a especialização operativa não representa o verdadeiro ato técnico, senão uma condição específica de trabalho, um tipo de obrigação da vida coletiva.


A atividade técnica é inventiva, cria mundos, destinos, abre possibilidades de devir e, portanto, nesse desdobramento temporal é onde encontra seu valor social.


Esta interessante argumentação tem desdobramentos enormes para nós, porque se a engenharia se torna operativa, ela perde valor social; ela se torna uma obrigação, uma necessidade operativa, um trabalho normatizado pelo corpo social e, nesse sentido, perante a menor chance de superar sua burocrática presença, a sociedade optará por eliminá-la do repertório de condutas humanas uma vez que é indiferente que sua presença seja originada ou não por um ser humano.


O repetitivo, isto é, o não criativo, se ergue na esfera do trabalho, da reprodução do já desvendado, que como tal, é completamente compreensível ou formalizável; facilmente organizável e reprodutível. Seu destino: ser absorvido por outra invenção técnica que permita operar o novo mundo que se abriu como consequência da sua presença reorganizadora.


Valorizar a engenharia não significa desatar uma guerra se entrincheirando em um falso reconhecimento de valor, imponto um pedágio obrigatório com o intuito de manter as velhas estruturas que outrora eram verdadeiras fontes de valor. A engenharia não pode ser pensada como um puro emprego, um trabalho, de modo que a sua defesa seja a defesa das garantias empregatícias de um modelo que se quer repetir a qualquer custo. Valorizar a engenharia é resgatar o diálogo do engenheiro com os objetos que são escuros para a coletividade, isto é, retornar ao papel criativo e civilizatório do ato técnico, que como bem destacava Simondon em 1958, já se encontra no domínio da pesquisa científica que, por ser pesquisa, está orientada para objetos ainda desconhecidos, e por isso, é mais valorizada socialmente.


O resgate da predominância da inventividade na engenharia é urgente.


José Antonio Aravena Reyes é Engenheiro Naval, doutor em Engenharia com pós-doutorado em filosofia da tecnologia, professor titular da disciplina Engenharia e Sociedade do curso de Engenharia Civil da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.


Referências

Harari, Y. 21 Lições para o Século XXI, Companhia das Letras, Brasil, 2018.

Frey, C.; Osborne, M. The future of employment: how susceptible are jobs to computerisation? Technological Forecasting and Social Change, n. 114, p. 254-280, 2017.

Maciente, A.; Rauen, C; Kubota, L. Tecnologias digitais, habilidades ocupacionais e emprego formal no Brasil entre 2003 e 2017. Mercado de Trabalho, Conjuntura e Análise, IPEA, Ano 25, 2019.

Oliveira, V. Novas DCNs para Engenharia – Desafios para implementação, palestra on–line, Canal Youtube GEN Exatas, 2020.

Castell, M.; Banet-Weiser, S. Economia é Cultura. In: Outra Economia é Possível, Castell, M. (Ed.), Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

Simondon, G. A Individuação à Luz das Noções de Forma e Informação, Coleção Trans, Editora 34, Brasil, 2020.



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1 commentaire


EngD
EngD
30 déc. 2022

Muito bom o texto. Faz uma análise profunda da relação do profissional da engenharia, e em especial o engenheiro, como ser técnico com o restante da sociedade e os possíveis desdobramentos desta relação no futuro. Contudo, na minha opinião, o reconhecimento da engenharia pela sociedade, aqui no Brasil, é muito tênue obscuro, de tal forma que a engenharia é tida como uma ferramenta útil e muito necessária, mas apenas um instrumento a ser utilizado pelos que têm o poder para tal. O que reivindicamos fortemente, é que a engenharia seja parte do processo decisório e que traga embutida em suas decisões técnicas os interesses maiores da sociedade. Adaptando esta reivindicação ao texto acima, eu diria que a engenharia deveria ser…

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